sábado, 1 de setembro de 2007

O filho iluminista

Subia a Teodoro Sampaio dentro de um ônibus cheio e lento. O trânsito do início de noite transformava, aos poucos, a viagem de trinta minutos em noventa. Nada para me distrair, só preocupações que tornariam o percurso mais cansativo. Foi quando tocou o celular do rapaz sentado no banco atrás de mim. Com uma voz doce e atenciosa ele começou a conversa.

Sua mãe tentava, sem sucesso, desligar o computador. O filho topou ensinar detalhadamente cada passo da tarefa. O botão fica no lado esquerdo, embaixo, onde está escrito Inicar. Achou? Então vai com ou mouse até lá. Agora, clica. Apareceu uma caixa? Isso. Vai em Desligar. Como assim, não tem Desligar? Mãe, a senhora está fazendo algo errado, porque é muito simples. Vou repetir tudo.

No Iluminismo, a razão ficou conhecida como guia da sabedoria. Através dela, o homem compreenderia e dominaria a natureza. A razão da informática passada do filho à mãe era agora o meio para dominar a máquina. Descartes, pensador pré-iluminista e autor da famosa sentença "Penso, logo existo", recomendaria: "Mãe, a razão para esta tarefa está em seu interior. Duvide e encontrará o caminho". Entretanto, o filho era um John Locke* empenhado em ajudar a mãe através da experiência sensível.

Passaram-se 15 minutos. Estava tensa imaginando que o jovem perderia a paciência a qualquer momento. Surpreendentemente, ele continuava com o mesmo tom carinhoso de quando atendeu a ligação. Não dava sinais de desgaste e muito menos parecia constrangido. Além de mim, outros ouvidos curiosos acompanhavam a história com a ansiedade de quem não entendia como o computador continuava ligado. As explicações do filho eram claras e precisas, óbvias para quem achava tudo aquilo brincadeira de criança.

O filho começou a rir, sem intenção de deboche. Ria sem desistir ou desacreditar. À essa altura a mãe pensava em deixar o computador ligado até que o filho chegasse. Não, mãe, você vai conseguir. De repente, a luz! O filho iluminista encontrou a saída. Mãe, qual botão do mouse a senhora está apertando? Sim, porque no mouse a gente pressiona com o dedo indicador o lado esquerdo, não o direito. Ahhhh, mãe, tá vendo? Era isso. O filho voltou a rir, desta vez a mãe também riu. Até eu ri, como todos os passageiros ao meu lado. Rimos de alivío.

* John Locke (1632-1740), pensador inglês, criticava a doutrina das idéias inatas, defendida por René Descartes (1569-1650). Para Locke, os seres humanos nasciam como tábulas rasas, e suas mentes eram folhas em branco a serem preenchidas com ensinamentos adquiridos através da experiência sensível. Descartes dizia que o conhecimento seria alcançado partindo-se de idéias que estão no interior do homem.

Um comentário:

Vitor disse...

Uri, acredito que um bom texto é aquele que consegue encontrar um equilíbrio entre o conteúdo e a simplicidade. Poucos conseguem estabelecer tal relação, mas seu texto, assim como todos os outros do Bola de Cristal, o faz com extrema perfeição, fazendo com que até a mais corriqueira das histórias do nosso cotidiano ganhe ares de encantamento e fascínio ao passar pelas suas mãos! Adoro ler o que você escreve, continue sempre assim!

P.S: vou atualizar meu blog hoje, se quiser dar uma passadinha lá depois, não vou me importar... =)

Bjo, um ótimo fim-de-semana!