sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Vizinhas

Do lado de fora de suas casas geminadas, não na calçada, cada uma de dentro da varanda, as senhoras conversavam. Alheias aos barulhos da rua e ao meu olhar observador. Conduzia a Sarah, uma criatura canina, em frente ao edifício que me acolhe. Não pude evitar uma repentina admiração. Deixei-me seduzir pela cena e a repará-la por alguns instantes. Quis comentá-la, mas como ainda não aprendi a linguagem dos cães, aceitei falar com os meus pensamentos. Era bonita a conversa. Tinha virtude. Elas usavam roupas parecidas e de cores femininas. Saias comportadas e blusas confortáveis. Seus corpos robustos, mas saudáveis, indicavam que aquele poderia ser um colóquio culinário. Quem sabe a receita do almoço? Ou o segredo do jantar de ontem? Os filhos seriam versos inevitáveis. Suas maiores alegrias e tudo o que mais importava até o último dia de vida. Implicariam com as cunhadas e a falta de atenção que, vez ou outra, sofriam. Reclamariam da saúde, listando dores que apareceram de uns tempos pra cá. E antes que a chaleira apitasse, o gato miasse, as pernas cansassem, convidaram-se a terminar a prosa um pouco mais tarde.

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Cafezinho passado na hora

Que cheirinho bom! Há dias me entusiasmei com a idéia de tomar um café com um amigo desaparecido. Não recordo quando foi a última vez que nos vimos. Casos assim não são raros, eu diria que são até corriqueiros. Combinamos um café-encontro naquela semana que trocamos e-mails. Para compensar o que de ruim existe numa vida de adiamentos e desencontros, recorro ao saboroso cafezinho, com cheirinho, quentura e pretidão. O gosto da vida adulta adocicado por um bom papo, consciente, sóbrio e próspero.

Quem mistura o conceito de café com cafeína resume grosseiramente um composto muito mais complexo. O grão do café verde, antes de passar pela torrefação, carrega em si uma variedade imensa de minerais, aminoácidos, lipídios, vitaminas, açúcares e ácidos clorogênicos. Interessante saber que esses últimos, após se torrefazerem, geram substâncias capazes de bloquear o impulso à depressão. E que, combinadas com os estímulos de atenção e vigília da cafeína, fazem do café uma bebida de poder.

Há quem sinta mais esse efeito estimulante. Confesso que o café extrapola a importância de me manter acordada ou distante de pensamentos moribundos. Posso tomá-lo minutos antes de dormir sem que me cause insônia ou perturbações durante o sono. Ao contrário, um cafezinho após o jantar, por exemplo, é a maneira perfeita de encerrar a noite e, quem sabe, um incentivador de bons sonhos.

Obviamente, os dias passaram, escaparam-me os planos de rever o amigo com a desculpa de dividir um café. Teria ele desistido? Não. Para a minha alegria, fui invitada, em boa hora, a retomar a proposta do cafezinho entre dois saudosos amigos. Propus esboçar concretamente um dia, uma hora e um lugar, caso contrário, o café ficará passado.

sábado, 1 de setembro de 2007

O filho iluminista

Subia a Teodoro Sampaio dentro de um ônibus cheio e lento. O trânsito do início de noite transformava, aos poucos, a viagem de trinta minutos em noventa. Nada para me distrair, só preocupações que tornariam o percurso mais cansativo. Foi quando tocou o celular do rapaz sentado no banco atrás de mim. Com uma voz doce e atenciosa ele começou a conversa.

Sua mãe tentava, sem sucesso, desligar o computador. O filho topou ensinar detalhadamente cada passo da tarefa. O botão fica no lado esquerdo, embaixo, onde está escrito Inicar. Achou? Então vai com ou mouse até lá. Agora, clica. Apareceu uma caixa? Isso. Vai em Desligar. Como assim, não tem Desligar? Mãe, a senhora está fazendo algo errado, porque é muito simples. Vou repetir tudo.

No Iluminismo, a razão ficou conhecida como guia da sabedoria. Através dela, o homem compreenderia e dominaria a natureza. A razão da informática passada do filho à mãe era agora o meio para dominar a máquina. Descartes, pensador pré-iluminista e autor da famosa sentença "Penso, logo existo", recomendaria: "Mãe, a razão para esta tarefa está em seu interior. Duvide e encontrará o caminho". Entretanto, o filho era um John Locke* empenhado em ajudar a mãe através da experiência sensível.

Passaram-se 15 minutos. Estava tensa imaginando que o jovem perderia a paciência a qualquer momento. Surpreendentemente, ele continuava com o mesmo tom carinhoso de quando atendeu a ligação. Não dava sinais de desgaste e muito menos parecia constrangido. Além de mim, outros ouvidos curiosos acompanhavam a história com a ansiedade de quem não entendia como o computador continuava ligado. As explicações do filho eram claras e precisas, óbvias para quem achava tudo aquilo brincadeira de criança.

O filho começou a rir, sem intenção de deboche. Ria sem desistir ou desacreditar. À essa altura a mãe pensava em deixar o computador ligado até que o filho chegasse. Não, mãe, você vai conseguir. De repente, a luz! O filho iluminista encontrou a saída. Mãe, qual botão do mouse a senhora está apertando? Sim, porque no mouse a gente pressiona com o dedo indicador o lado esquerdo, não o direito. Ahhhh, mãe, tá vendo? Era isso. O filho voltou a rir, desta vez a mãe também riu. Até eu ri, como todos os passageiros ao meu lado. Rimos de alivío.

* John Locke (1632-1740), pensador inglês, criticava a doutrina das idéias inatas, defendida por René Descartes (1569-1650). Para Locke, os seres humanos nasciam como tábulas rasas, e suas mentes eram folhas em branco a serem preenchidas com ensinamentos adquiridos através da experiência sensível. Descartes dizia que o conhecimento seria alcançado partindo-se de idéias que estão no interior do homem.